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A capitalização acaba com a previdência pública

Luiz Carlos Bresser-Pereira y Nuria Cunill Grau, eds.

Nota no Facebook, 10.3.2019

Embora a emenda da Previdência afirme que a escolha do regime de capitalização será optativa, na pratica reduz o teto previdenciário de seis para um salário mínimo. É uma violência contra o direito humano a uma velhice digna.


Guilherme Boulos é a grande esperança da política brasileira. Eu tive essa impressão há pouco mais de quatro anos quando o vi discursar no Tuca em um ato público a favor da reeleição de Dilma Rousseff. Depois, ao conhecê-lo um pouco melhor, essa impressão só se confirmou. Não votei nele para a presidência porque as posições do PSOL são ótimas críticas do que está aí, neste triste Brasil, mas não são propostas para governá-lo. Mas espero que eu ou meus filhos ainda possam votar nele para a presidência quando tiver um projeto de governo baseado no princípio que ele mais preza – o da solidariedade.



Hoje a Carta Capital publica sua coluna que tem como título na edição impressa, “Capitalização para poucos”. É a melhor crítica que até hoje li da emenda constitucional apresentada pelo governo (talvez fosse melhor dizer, “do desgoverno”) Bolsonaro, porque avalia com precisão a proposta mais grave nele contido: o da introdução do regime de capitalização.



A emenda oferece aos trabalhadores a falsa possibilidade de escolha do regime de capitalização. Como Nelson Barbosa notou, como se espera, se a contribuição patronal for menor no caso de empregados que adotarem a capitalização, a adesão vai deixar de ser opcional: quem não aceitar a capitalização não vai conseguir emprego.



Boulos tem razão. A proposta acaba com a previdência pública e cria um sistema de previdência privada semelhante ao que foi adotado com péssimos resultados no Chile. Ela dará muito lucro às empresas financeiras seguradoras e muito pouca segurança para as pessoas. Previdência pública é aquela que garante a todos os cidadãos independentemente do que tenha ele contribuído garantia de um direito humano fundamental – o direito a uma velhice digna até um certo limite de remuneração: o teto previdenciário. Hoje, no Brasil, o teto é seis salários mínimos. Pela proposta do governo, no quadro do regime de capitalização, passa a ser um salário mínimo. Acima disso, tudo dependerá do rendimento do fundo de previdência privado que escolheu.

Uma sociedade pode ser fundada ou no princípio da solidariedade ou no do individualismo. A previdência pública por definição é um sistema baseado na solidariedade porque nela o Estado garante um direito de cidadania. Mudar o sistema para o da capitalização significará miséria para muitos.

E há uma questão fundamental. Deixar o regime de capitalização a ser adotado para ser resolvido em legislação complementar é possibilitar a eliminação de direitos hoje existentes sem necessidade de maioria de dois terços.

  



Previdência de Bolsonaro colocará a maioria na miséria absoluta

Guilherme Boulos

Carta Capital, 10.3.2019.

Um ponto adicional da previdência privada: ao contrário do que se pensa, nem todo o valor investido poderá ser resgatado

Apresentada há poucas semanas, a proposta de Reforma da Previdência de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes consegue ser pior do que a de Michel Temer. Aumenta para 40 anos a contribuição para que se possa receber aposentadoria integral, corta os benefícios por invalidez e pensões por morte e diminui para menos da metade de um salário mínimo o valor pago a idosos pobres.

Entretanto, o ataque a longo prazo mais profundo é o que prevê a transferência do regime previdenciário para a capitalização. Ao contrário do sistema de solidariedade entre gerações que vigora hoje no Brasil, na capitalização é a poupança individual de cada trabalhador que custeia no fim da vida a sua própria aposentadoria.

Esse é o centro da reforma. A proposta é tornar as condições de aposentadoria pelo INSS tão difíceis e desvantajosas que levem os trabalhadores com melhor condição de renda e estabilidade no emprego a migrar para a previdência privada.

Os que não tiverem essa escolha – a maioria esmagadora – serão relegados a receber benefícios assistenciais desvinculados do salário mínimo, ou seja, condenados a viver sem nenhuma dignidade ou a trabalhar até morrer para ter alguma. Na prática, o que se pretende é o fim da Previdência pública, já que com a redução drástica das contribuições do empregador e das empresas, decorrentes da tendência à capitalização individual, o INSS pode tornar-se – aí sim! – insolvente.

Nos anos 1980, o ditador Augusto Pinochet transformou em capitalização o regime previdenciário do Chile. Na época, seu governo, assessorado por um time de economistas liberais de Chicago, vendeu a ideia de que a solução para a crise fiscal do Estado e para ativar a economia era acabar com a Previdência pública. Um desses Chicago Boys era ninguém menos que o atual ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, que trabalhou no Chile a convite do grupo político do ditador. Guedes já disse que o fato de colaborar com uma ditadura com mais de 40 mil executados, desaparecidos e torturados era “irrelevante do ponto de vista intelectual”.

Quatro décadas depois, o preço da reforma chilena é devastador. Oito de cada dez aposentados pelo novo sistema recebem menos de um salário mínimo de pensão e 44% deles estão abaixo da linha da pobreza. Semelhante à proposta de Bolsonaro e Guedes, a previdência chilena isenta o Estado e os empregadores e é exclusivamente custeada pelos próprios trabalhadores.

O montante arrecadado é gerido por entidades bilionárias chamadas de AFP (administradoras de fundos de pensão). Apenas cinco delas administram cerca de 70% do PIB do país e faturam 5 milhões de reais diariamente em comissões mensais obrigatórias e pouquíssimo transparentes dos segurados. Este é um ponto adicional da previdência privada: ao contrário do que se pensa, nem todo o valor investido poderá ser resgatado, pois os fundos cobram “taxas de administração”.

Enquanto as empresas lucram, uma legião de idosos aposentados e miseráveis vai se formando, incapaz de bancar sequer seus remédios e gastos mínimos, passando a depender de familiares que trabalham para complementar suas rendas. Não por acaso, o Chile lidera o índice de suicídios entre idosos com mais de 80 anos na América Latina, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas do país.

Ligadas a grandes grupos financeiros internacionais, as AFP têm um poder de barganha imenso, financiando candidaturas e cooptando grande parte do sistema político, empresarial e até sindical. As exigências de transparência e regulação estão na contramão do interesse de grandes empresas e bancos em garantir o retorno financeiro de seus investimentos. A conta sobra para a massa de trabalhadores que compram o sonho de se aposentar com seu próprio esforço, mas acabam recebendo um valor muito aquém do necessário para sobreviver dignamente.

No Chile, isso gerou uma série de manifestações populares organizadas pelo “No+AFP”, um grupo da sociedade civil que luta por reverter a desastrosa reforma da previdência de Pinochet. Milhares de cidadãos estiveram nas ruas nos últimos anos, exigindo o fim da capitalização e um sistema de pensões “solidário” e “administrado pelo Estado”. Em outras palavras, pedem para retomar por lá justamente o que a proposta de Bolsonaro propõe acabar por aqui.

Na reforma da Previdência proposta por Bolsonaro sobrará a miséria absoluta para a maioria dos cidadãos

O que está em jogo é qual sociedade queremos para o futuro: se baseada no princípio da solidariedade, assegurando vida digna para seus idosos a partir de um sistema público, ou baseada no “cada um por si”, onde terão direito ao merecido descanso apenas aqueles que tiverem condições de arcar com uma previdência privada, gerida por grandes bancos.

Os demais ou morrerão trabalhando ou envelhecerão na miséria. Essa escolha será tomada nos próximos meses. Ainda há tempo de interferir nela.